terça-feira, 3 de maio de 2011

Mundo estranho

Mundo estranho...

Ele levantou-se ainda tonto. A sua cabeça fazia confusões. Não sabia na verdade onde estava e porque estava ali. O local estava deserto. Os únicos pés que ainda enxergava eram os seus, melados de barro e com um grosso arranhão perto do mindinho do pé esquerdo. Mesmo sem rumo começou a caminhar cambaleante no sentido contrário, sempre contra a corrente que foi ou era a sua vida. A calçada era negra como os seus olhos. O ar não soprava odores. As cores eram insignificantes diante daquela calçada de luto. Sentiu um cansaço repentino como se houvesse trabalhado na hora anterior ao seu desfalecimento. Não descansou. Não tinha motivos para tanto. Ensaiou uma corrida e caiu no chão mais duro que um dia se arrebentou.

De repente sentiu um cheiro forte de pólvora. Desesperadamente procurou ferimentos pelo corpo e notou que até as velhas cicatrizes haviam sumido dali. Pensou! Como poderia as marcas deixadas pela vida na rua, no asfalto, nos assaltos, sumirem assim? Que local era aquele onde os encantamentos se desencantam, se espantam e partem? Sentiu vergonha do medo que teve e choramingou baixinho enquanto enxugava o suor sem cheiro.

As casas pelo caminho não representavam imagens que pudesse fazer ligação com um passado que já estava bem longe, como se o tempo contasse e apagasse tudo. As casas não tinham cores definidas. Não eram nítidas. Eram cores aveludadas. As janelas, as portas, o telhado, nada fazia sentido. Tudo fazia aumentar a confusão e o homem levava as mãos à cabeça. Fechava os olhos e fazia gestos negativos, puxando os cabelos grisalhos e despenteados. Esse movimento desordenado causou-lhe mais desordens. Foi ao chão e permaneceu ali frações de tempos incontáveis reparando um mundo que não girava, de um sol que não se apagava e nem tão pouco esquentava tudo ali.

Procurou entender o que não se passava. Pintou um quadro mental de sofrimento. Suas mãos trêmulas pincelavam os momentos mais improváveis na vida ou na morte de um homem que aprendeu a ser rude nos gestos, mesquinho nos sentimentos, insólito nas atitudes e ainda mais cruel na resolução das demandas da vida terrena. Tudo aquilo ali ficou pintado na mente e expunham as imagens através de um rosto sofrido, ainda mais acentuado pelos arrependimentos que rodopiavam sua cabeça a cada momento, levando-o outras vezes ao solo, ao pranto.

Choramingou.

Levantou se perguntando o que era ele e o que era aquilo tudo que não se passava. Os registros que seus olhos faziam não explicavam nada. Árvores enormes e fantasmagóricas assombravam o confuso ser. Tinha medo de tudo. Até de se sentir assim, estranho, sem dores, sem cheiros.

Resolveu voltar ao princípio da história e verificar o que de inconsistente ou incoerente era aquilo tudo. Descobriu-se morto. Era apenas uma alma em estado de transição, de um mundo real, tão confuso quanto aquele que o acomodara num passado longínquo ou mesmo perto de mais lhe causando náuseas.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Crônicas de um pobre diabo

A vida de diabo não anda nada fácil. Os apelos aos céus para que as tentações se estanquem estão tirando o sono do pobre coitado. Tudo o que acontece, tá lá, é culpa dele. Foi ele quem levou os mortais as mais variadas tentações; a cometerem sacrilégios.

Outro dia encontrei o Totonho de Nice, do Alto do Bode, que tinha perdido todo o dinheiro do mês no jogo de baralho. Perguntado sobre seu aperreio ele me disse desapontado:

−Fui tentado pelo príncipe das trevas, perdi todo o meu dinheiro na barraca do Bal! Nem o dinheiro da feira sobrou! Desabafou.

Carminha de Zumira, semana passada, tava louca da vida porque havia cometido uma barbaridade com a cadela da vizinha. Deu uma paulada na cabeça do animal, que morreu logo em seguida. Pra quem coube a culpa de tal ato insano? Pro pobre diabo é claro. Comentando sobre o acontecido, tratou logo de se justificar:

─ De repente fui acometida por uma raiva sobrenatural. Aquele animal não me deixava dormir a noite! Latia das dez da noite às cinco da manhã! Explicou.

─ Não tive dúvidas, peguei um pedaço de madeira que tinha atrás da porta e taquei na cabeça da cadela. Isso só pode ter sido obra do Demo mesmo. Quem em plena consciência poderia fazer algo de tão cruel?

Algumas expressões estão ganhando uma forma velada de colocar o coitado do Diabo em maus lençóis. Mal por mal cito algumas delas:

Se o menino azucrina a paciência da irmã mais velha sai de bate e pronto.

─ Tu tá com o Diabo no couro é infeliz?!

Se sair e bater com o carro num gelo baiano o motorista sai logo com esta.

─ Tava com um sono dos diabos.

Se a madame sai com o cartão de crédito do marido e torra o limite num grande magazine, lá vem a desculpa.

─ Fui tentada a comprar até o que não me servirá pra nada! Diabos!

É. Quem tenta e azucrina realmente é o Diabo! Ops! Quero dizer, é para ele quem vão recair todas as culpas possíveis. O cara anda mal pros diabos mesmo. O pior é que o infeliz não tem nem pra quem se queixar. Vai falar com quem? O portão dos céus está fechado pra ele faz um tempão.

Afirmo aqui a minha defesa desse ser tão acusado nos tempos de crise econômica e inflação em alta. Falando nisso, com a taxa SELIC aumentando todo mês deixa de ser uma tentação dos diabos comprar aquela televisão dos sonhos, trocar o carro usado por um zero bala, adquirir uma casa naquela praia badalada etc.

Além dos problemas que demos conta tá aí mais um agravante: o feijão vai ficar ralo de tanta água que ele vai ter que colocar pra receber tanta gente encaminhada para o seu modesto lar. Zizo de Ernestina esta semana tava prometendo manda uns quatros sujeitos pro inferno. O fato é que o rapaz anda arretado com o assédio sobre sua formosa namorada. Dia desse encontrei o cara bufando porque Nequinho Trindade, filho do padeiro deu um fiu fiu pra ela bem na esquina de sua casa. Confessou que não tá aguentando mais a azaração em cima de sua futura mulher.

─ Esse folgado tá querendo ir pros infernos. Minha pechera tá nervosa pra entrar no bucho daquele cabra safado! Disse espumando de raiva.

Eu mesmo, a semana passada mandei um bocado de torcedor do time adversário ir pros infernos. A pior coisa é papo de torcedor quando seu time tá ganhando. Incomoda mais do que unha encravada. O meu glorioso tá na beira da quarta divisão do campeonato local, não ganha uma partida e ainda tenho que escutar os desaforos daqueles folgados. A meu filho, agüentei não.

─ Vão tudinho pros infernos e me deixem em paz!

Desculpe seu Diabo, mas ninguém é de ferro. Prometo não fazer mais isso. Foi só força de expressão mesmo. Da próxima vez peço pra esses infelizes resolverem com São Pedro que é gente finíssima e pode aliviar a demanda pra sua freguesia.

Se as coisas não melhorarem já estou pressentindo uma condenação sumária para um Diabo cansado de ser o bode expiatório pra tanta pisada na bola de nós seres humanos.

─ Vai de reto Satanás!

Meninos de rua - o sol

Passava do meio-dia. Um corpo inerte permaneceu a noite inteira ali. A posição fetal fazia-o nascer todos os dias de sua vida. Os transeuntes quase esbarravam nele. Cinzento, pés pretos, olhos vermelhos, papo amarelo, multicor. A expressão era de um menino; o sonho, de adolescente; o humor de um adulto; a vida sabe-se lá o quê.

Aos poucos acordava daquele pesadelo para outra vida de horror. Sentou-se e reparou a movimentação de carros e pessoas que passavam ao largo. Pôs a mão dentro do calção tamanho grande, que o deixava perdido na sua magreza e retirou o café da manhã, que fora o jantar e o almoço do dia anterior – cola. Enquanto cheirava, afagava os cabelos castanhos sujos, limpava as remelas da noite sombria e tornava a afagá-los.

Tomado o café, cruzou a rua larga, despreocupado com o vai e vem dos carros. Braços bem abertos, pernas em compassos diferente do resto do corpo, arrastava-se para o outro lado da cidade, o descampado da cidade. Ainda segurava no beiço a garrafa de cola. Parecia um magro ianomâmi pós-moderno, com sua boca esticada e pedaço de graveto enfiado no lábio inferior. Um verdadeiro curumim perdido na floresta de pedra e asfalto.

Parecia saber pra onde ir. Parecia procurar um deus. Mas que deus queria achá-lo. Passou a noite dando bobeira debaixo da velha marquise e ele não o encontrou. Mas parecia procurar um deus. Olhava para o lado, pros pés, pras mãos, pros outros, por entre os prédios, e nada, nadinha de nada. E continuava sua busca. Por certo não saberia explicar esse deus, essa fonte de inspiração para seu delírio de início de tarde. Mais a frente tentava equilibrar a garrafinha de cola na cabeça. Agora parecia uma indiazinha que havia chegado à aldeia depois de apanhar água no igarapé.

Continuava caminhando, olhando a tudo e a todos. Não falava, não balbuciava nada. Parecia tomar decisões certas, seguir os caminhos mais certos, os horizontes mais firmes. Transformara-se num grande cacique, sábio na chefia de si mesmo. Atento aos momentos de perigo, um guerreiro concreto, pronto para o infortúnio, pronto e senhor de si. E assim percorria cada ponto da cidade numa mutação veloz. Parecia crescer, e mais veloz. Parecia esticar, e cada vez mais veloz. Ficava branco de medo, azul de fome, vermelho de raiva e as mutações continuavam cada vez e mais veloz.

Olhando todo o percurso desenhado nas diversas ruas por onde passou, aquela pobre criança havia assimilado a vida dele e de todos os outros que passaram por ele em cada estágio de sua mutação. Seus índios, de diversas aldeias e de diversas raças, desaceleravam próximo ao ponto final. Tinha uma mutação a mais. Mais velha, mais sábia e curandeira. Nosso pequeno rebento havia se transformado em pajé e percorrera toda a cidade para abraçar o deus que descobriu nunca lhe abandonara – o sol. E como em ritual de pajelança abraçou-o amavelmente, elevou as mãos aos céus se cobrindo d’ouro dos raios do sol e tornou a dormir, feliz ao relento.