sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O mulato nu

Ele arrastava a perna torta, marcando a cidade com sua dor sufocante. O esforço em chegar a lugar nenhum não deu resultados naquela noite molhada de verão. Um mormaço cobria a testa da cidade, lambendo seus olhos de vidros, descobrindo suas angústias, enquanto a dor consumia o mulato desnudo. Simplesmente o peso do corpo já era suficiente, um fardo enorme para um corpo substrato, ínfimo de tudo. Só a dor era muita, farta, obesa e se fazia presente nos derradeiros da vida dele. Procurava um destino que não sabia onde encontrar. Mas sabia que ele viria ao seu encontro, mesmo sabendo sem forças.

Os olhos pendiam numa tristeza sem fim, sem lágrimas. Vermelhos, secaram havia tempo. Os ermos da cidade o recebiam de seios abertos, acolhendo a nudez, encobrindo suas partes. O mulato havia perdido suas vestes enquanto dormia. Provavelmente retiradas nas ébrias calçadas do bairro feio, o bairro mais vil da cidade, pelos companheiros de delinqüência, num ato covarde e pernicioso.

A noite sem lua se encontrou com as nuvens, numa forma de vestir o mulato trôpego e desceram à noite e meia. Foi difícil capturá-lo, suas andanças o arrastavam para cada vez mais longe, num desespero de vida, tornando o trabalho mais difícil para a natureza. O mulato parecia fugir acometido pelas velhas alucinações das ruas descalças. O fumo estava presente no seu suor noturno e no taciturno respirar. Acometido pelas velhas lembranças de outrora, experiências de violência, o jovem corria e pendia com uma perna que não ajudava muito. De quando em quando parava, curvava-se para frente e segurava os joelhos, num esforço descomunal de recuperar o fôlego. Parecia desesperado ao olhar para trás. Pressentia algo de muito ruim. Uivava às vezes para dentro de si.

Sua jornada chegou ao merecido desfecho. O célebre bairro da Boa Vista no centro da cidade do Recife, escondeu o mulato sem roupas, sem identidade. O acolheu nas marquises de velhos prédios, tão mulatos quanto aquele filho da cidade. E sob as madrinhas nuvens que velavam seu sono, os segundos da noite se foram enquanto um velho mendigo que por ali passava lhe emprestava um cobertor menos úmido que seu corpo franzino.

Numa noite de alucinações o mulato flagrou-se vestido, seu corpo íntegro, e uma perna não menos perfeita que a outra do outro lado corpo. Parou e chorou seu vício.

Nenhum comentário:

Postar um comentário